5 de setembro de 2005

Contem-me, pediam os cegos

*EDUARDO GALEANO
O gol

O Gol é o orgasmo do futebol. E, como o orgasmo, o gol é cada vez menos freqüente na vida moderna.

Há meio século, era raro que uma partida terminasse sem gols: 0 a 0, duas bocas abertas, dois bocejos. Agora, os onze jogadores passam toda a partida pendurados na trave, dedicados a evitar os gols e sem tempo para fazer nenhum.

O entusiasmo que se desencadeia cada vez que a bola sacode a rede pode parecer mistério ou loucura, mas é preciso levar em conta que o milagre é raro. O gol, mesmo que seja um golzinho, é sempre gooooooooool na garganta dos locutores de rádio, um dó de peito capaz de deixar Caruso mudo para sempre, e a multidão delira e o estádio se esquece que é de cimento, se solta da terra e vai para o espaço.

Pelé

Cem canções falam seu nome. Aos dezessete anos foi campeão do mundo e rei do futebol. Não tinha vinte anos quando o governo do Brasil o declarou tesouro nacional e proibiu sua exportação. Ganhou três campeonatos mundiais com a seleção brasileira e dois com o Santos. Depois de seu gol número mil, continuou somando. Jogou mais de mil e trezentas partidas, em oitenta países, uma partida atrás da outra em ritmo de pancadaria, e fez quase mil e trezentos gols. Uma vez, deteve uma guerra: a Nigéria e Biafra fizeram uma trégua para vê-lo jogar.

Vê-lo jogar, bem valia uma trégua e muito mais. Quando Pelé ia correndo, passava através dos adversários como um punhal. Quando parava, os adversários se perdiam nos labirintos que suas pernas desenhavam. Quando saltava, subia no ar como se o ar fosse uma escada. Quando cobrava uma falta, os adversários que formavam a barreira queriam ficar de costas, de cara para a meta, para não perder o golaço.

Tinha nascido em casa pobre, num povoado remoto, e chegou ao cume do poder e da fortuna, onde os negros têm a entrada proibida. Fora das canchas, nunca doou um minuto de seu tempo e jamais uma moeda caiu de seu bolso. Mas os que tivemos a sorte de vê-lo jogar, recebemos dele oferendas de rara beleza: momentos desses tão dignos de imortalidade que a gente pode acreditar que a imortalidade existe.

Puskas

Foi em 1961. O Real Madri enfrentava, em seu campo, o Atlético de Madri.
Assim que começou a partida, Ferenc Puskas fez um gol bis, como Zizinho tinha feito no Mundial de 50. O atacante húngaro do Real Madri cobrou uma falta na beira da área, e a bola entrou. Aí, o juiz se aproximou de Puskas, que festejava com os braços para o alto;

– Sinto muito – desculpou-se – mas eu ainda não tinha apitado.

E Puskas voltou a chutar. Chutou de esquerda, como antes, e a bola fez exatamente o mesmo percurso: passou feito um tiro de canhão sobre as mesmas cabeças dos mesmos jogadores da barreira e entrou, como o gol anulado, pelo ângulo esquerdo da meta de Madinabeytia, que saltou da mesma forma anterior e não conseguiu, do mesmo jeito que antes, nem encostar nela.

Osvaldo Soriano

Maradona
Foi em 1973. Jogavam as equipes infantis de Argentinos Juniors e River Plate, em Buenos Aires. O número 10 do Argentinos recebeu a bola de seu goleiro, evitou o beque central do River e começou a corrida.

Vários jogadores foram ao seu encontro: passou a bola por fora de um deles, entre as pernas de outro, e enganou mais um de calcanhar. Depois, sem parar, deixou paralisados os zagueiros e botou o goleiro caído no chão, e se meteu caminhando com a bola na meta rival. No campo tinham ficado sete meninos fritos e quatro que não conseguiram fechar a boca.
Aquela equipe de garotinhos, os Cebollitas, estava invicta há cem partidas e tinha chamado a atenção dos jornalistas. Um dos jogadores, Veneno, que tinha treze anos, declarou:

– Jogamos para nos divertir. Nunca vamos jogar por dinheiro. Quando entra dinheiro, todos se matam para ser estrelas, e então chega a hora da inveja e do egoísmo.

Falou abraçado ao jogador mais querido de todos, que também era o mais alegre e o mais baixinho: Diego Armando Maradona, que tinha doze anos e acabava de fazer aquele gol incrível.
Maradona tinha o costume de pôr a língua de fora quando estava em pleno impulso. Todos os seus gols tinham sido feitos com a língua de fora. De noite dormia abraçado com a bola e de dia fazia prodígios com ela. Vivia numa casa pobre de um bairro pobre e queria ser técnico industrial.

Gol de Zico

O brasileiro Zico, astro do Kashima, fez o gol da vitória, que foi o mais lindo dos gols da sua vida. A bola chegou, cruzada ao centro, pela direitas. Zico, que estava na meia lua da área, entrou com tudo. No embalo, ultrapassou-a: quando percebeu que a bola tinha ficado para trás, deu uma cambalhota no ar e em pleno vôo, com a cara para o chão, chutou-a de calcanhar. Foi uma bicicleta, mas ao contrário.

– Contem-me como foi esse gol – pediam os cegos.

 



 
 
RODRIGO FEIJÓ
 
"Povo que não tem virtude acaba por ser escravo!"
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