14 de novembro de 2006

O que não foi dito sobre o controle aéreo


Fonte: Revista VEJA - Rosana Zakabi

"Quando apenas uma única autoridade cuida de todos esses setores, não há transparência."
Marc Baumgartner - presidente da IFATCA,
Federação Internacional das Associações de Controladores de Tráfego Aéreo


Nas últimas semanas, os brasileiros que viajaram de avião viveram momentos de angústia e caos devido à operação-padrão deflagrada pelos controladores aéreos. Os atrasos nos vôos passaram de 20 horas e mais de 50 vôos foram cancelados por dia. Nesta entrevista, o suíço Marc Baumgartner presidente da IFATCA, Federação Internacional das Associações de Controladores de Tráfego Aéreo, explica como é o trabalho desses profissionais em outros países. Ele revela que a operação-padrão não é invenção dos controladores brasileiros. "Trata-se de uma medida de segurança tomada sempre que ocorre um acidente como o que envolveu o Legacy da Embraer e o Boeing da Gol", diz ele. A IFATCA é a principal entidade do controle aéreo mundial. Reúne mais de 50.000 controladores em 125 países. Baumgartner tem 38 anos e mora em Genebra, na Suíça. De lá, concedeu a seguinte entrevista a VEJA:

VEJA - A operação-padrão feita pelos controladores de tráfego aéreo brasileiros tem precedentes em outros países?
Marc Baumgartner
- A operação-padrão é um procedimento comum sempre que acontece um acidente como o que envolveu o Legacy da Embraer e o Boeing da Gol. O sistema aéreo tem três pilares: os equipamentos, a mão-de-obra e a gestão do sistema. Quando ocorre um desastre, é preciso avaliar qual desses pilares falhou e por quê. Enquanto isso não é esclarecido, o sistema entra num processo de retardamento, resumindo-se a oferecer os serviços básicos, para garantir que não exista qualquer tipo de risco ao usuário. É um mecanismo de segurança. Uma situação semelhante ocorreu logo após a tragédia de 11 de Setembro, por exemplo. Após o choque de aeronaves em Zurique, o controle aéreo reduziu a capacidade do tráfego por três semanas para tentar descobrir o que havia dado errado. No caso da operação-padrão em curso no Brasil, o problema é que esse procedimento de praxe feito pelo controle aéreo não foi explicado de forma adequada às companhias aéreas, ao público ou à imprensa. A falta de informação é que gerou toda essa confusão.

VEJA - Uma das reivindicações dos controladores é a desmilitarizaçã o do controle aéreo. Se isso ocorresse, segundo eles, o sistema seria mais transparente. O senhor concorda?
Baumgartner
- Atualmente há um número ínfimo de países no mundo que ainda têm o controle aéreo civil nas mãos dos militares. Mas não importa quem cuida do tráfego aéreo, se são militares ou civis, mas sim como o sistema é estruturado. O controle aéreo é dividido em três setores principais: um que fornece os serviços de compra de equipamento, manutenção e contratação de pessoal, outro que regulamenta esses serviços e um terceiro que faz as investigações de acidentes.
Quando apenas uma única autoridade cuida de todos esses setores, não há transparência.

VEJA - Por que?
Baumgartner
- Se essa autoridade compra um rádio ou um radar, por exemplo, e diz: "Esse equipamento é o mais adequado", o setor que regulamenta e fiscaliza essa aquisição, se estiver subordinado a essa autoridade ou possuir funcionários ligados a ela, vai concordar. Assim, quem comprou os equipamentos não precisará provar para mais ninguém se eles realmente funcionam de maneira eficiente ou não.

VEJA - A falta de transparência também influencia nos acidentes aéreos?
Baumgartner
- Sem dúvida. Se a equipe de investigações sobre determinado acidente percebe que houve falha no rádio ou no radar, vai questionar os setores que fornecem e regulamentam o serviço. Quando estão todos sob controle da mesma autoridade, e os setores que cuidam do serviço insistem que o sistema é seguro, as chances são grandes de que fique tudo por isso mesmo.

VEJA - Como o sistema é dividido em outros países?
Baumgartner
- Nos países da Europa, as funções são bem divididas entre quem fornece e quem regulamenta os serviços. Existem departamentos específicos que obrigam os fornecedores a provar que determinado equipamento é realmente seguro e a fazer uma série de testes e relatórios comprovando isso. Nos Estados Unidos, existe uma única autoridade que controla o sistema aéreo, a FAA (Federal Aviation Administration) . Mas dentro da estrutura da FAA, há setores bem divididos, administrados por entidades diferentes. No caso de quem investiga acidentes aéreos, os departamentos são totalmente separados dos outros serviços tanto na Europa como nos Estados Unidos.

VEJA - Se o Brasil resolvesse desmilitarizar o controle aéreo civil, como isso deveria ser feito?
Baumgartner
- Não seria um processo fácil. O governo teria de rever todo o mecanismo do sistema, montar uma nova regulamentação, determinar que autoridade cuidaria dos serviços. A Itália e a Grécia passaram por esse processo no final dos anos 80 e foi algo muito penoso e demorado. No Brasil, isso levaria de cinco a sete anos, aproximadamente, a partir do momento em que se decidisse mudar, até o sistema vir a operar de maneira eficiente.

VEJA - No Brasil, cada setor do controle aéreo cuida de áreas muito extensas e não há controladores suficientes para isso. O país tem hoje 2.700 controladores, mas para que o sistema funcionasse de forma adequada, precisaria haver pelo menos mais 800. O que o senhor pensa disso?
Baumgartner
- Países como o Brasil, que têm áreas de grande extensão pouco habitadas, como a Amazônia, necessitam de radares com um alcance maior do que a média e, por isso, precisam de um investimento muito alto, e uma infra-estrutura bem maior para atingir o mesmo nível de qualidade de vigilância obtida pelos países da Europa, por exemplo. Isso inclui não apenas um número maior de funcionários, mas também uma quantidade de equipamentos proporcional ao tamanho do país.

VEJA - Qual é o maior problema enfrentado pelos controladores no dia-a-dia?
Baumgartner
- Nossas experiências mostram que na maioria das vezes, é o congestionamento das freqüências de rádio. Na Europa e nos Estados Unidos, a ocupação dos canais de rádio estão sempre acima dos 90%.

VEJA - Por que?
Baumgartner
- Cada comunicação que o controlador precisa fazer com determinada aeronave leva de 15 a 20 segundos. Isso é muito tempo. Quando o tráfego atinge determinado nível, o controlador não consegue mais falar, porque enquanto uma aeronave está chamando, ele está se comunicando com outra e já tem mais uma na fila. O grande desafio na Europa e nos Estados Unidos é aumentar a capacidade. Alguns países europeus estão testando a comunicação por um sistema de mensagens instantâneas via computador em que o controlador envia uma espécie de e-mail para o avião em vez de falar por rádio. O programa chama-se Controller-Pilot Datalink.

VEJA - O congestionamento dos rádios pode contribuir para os acidentes aéreos?
Baumgartner
- Se todas as linhas estão congestionadas e isso impossibilita que o controlador se comunique com a aeronave em tempo hábil, sem dúvida cria-se o risco de acidentes.

VEJA - No Brasil, alguns setores do controle aéreo têm mais de cinco freqüências de rádio, mas nenhuma funciona direito. Qual seria a solução, nesse caso?
Baumgartner
- Uma solução que tem funcionado bem em países de grande extensão territorial, na África e na região do Pacífico, é a comunicação via satélite. Esse sistema ajuda a superar os problemas existentes em terra, entre eles fazer a manutenção de radares no meio da floresta ou do deserto, ou instalar antenas de rádio dentro de parques nacionais, colocando em risco a vida selvagem do local.

VEJA - O tráfego aéreo mundial cresce 6% ao ano. Na América do Sul, o porcentual é de 11% e no Brasil, 15%. Se há mais aviões no céu, o risco de acidentes também aumenta?
Baumgartner
- Sim. O risco de colisão é calculado com base na quantidade de horas voadas. Assim, se há mais aviões voando, a quantidade de horas de vôo aumenta e, conseqüentemente, também os riscos de acidentes.

VEJA - Isso significa que o aumento da ocorrência de acidentes aéreos é inevitável?
Baumgartner
- Quando existe crescimento do tráfego aéreo, é necessário adotar uma série de novas medidas de segurança para melhorar o sistema a fim de manter o índice de acidentes no mesmo nível. É necessário fazer uma revisão periódica no funcionamento de cada setor, certificar-se de que os radares, rádio e sistemas de navegação estão aptos para comportar o aumento de fluxo e, em muitos casos, investir em novos equipamentos de vigilância. Também torna-se necessário investir mais na capacitação dos profissionais que atuam nessa área. Se nada disso for feito, aí, sim, o aumento de acidentes aéreos torna-se inevitável.

VEJA - Como os controladores de outros países lidam com o stress?
Baumgartner
- Na Europa e na América do Norte, eles aprendem no curso de controladores a lidar com o problema. Eles aprendem o que é stress, como ele se desenvolve, como lidar com isso. Alguns países, como a Alemanha e Suíça, a cada cinco anos o sistema de controle aéreo envia os controladores para passar duas semanas num spa. Lá, eles têm sessões de talassoterapia (banho terapêutico com água do mar), massagem, entre outras coisas.

VEJA - Alguns radares no Brasil têm mais de 30 anos. Isso é um problema?
Baumgartner
- Não necessariamente. Existem no mundo equipamentos antigos, mas que funcionam de maneira eficiente. Nos Estados Unidos, há sistemas de vigilância computadorizada da década de 60. Os americanos trabalham com novas telas e novos programas, mas muitos aparelhos de quatro décadas atrás continuam funcionando. O que importa não é a idade do equipamento e, sim, se eles passam regularmente por manutenção e testes para verificar se estão operando corretamente.

VEJA - Como é a formação dos controladores nos outros países do mundo?
Baumgartner
- Eles geralmente passam por um processo de seleção concorridíssimo. Na Europa, costumam ser 2.000 candidatos para 10 ou 15 vagas, em média. Na maioria dos casos, basta ter segundo grau completo, mas em alguns países, como na Espanha e em parte de Portugal e da França, é necessário ter curso superior. Nos Estados Unidos, o futuro controlador vai para uma universidade de aviação e, após a conclusão dos estudos, é contratado pela FAA. Na Europa, o tempo médio de formação dos controladores é de três anos e meio. Em alguns países, o controlador ainda pode passar por seis ou sete qualificações e esse processo pode durar sete anos.

VEJA - Na história da aviação, quais são as principais causas de um acidente: defeito mecânico ou falha humana?
Baumgartner
- Em 70% dos casos é erro humano. É por isso que, quando ocorre um acidente, a tendência é colocar a culpa nas pessoas envolvidas e raramente apontar defeito mecânico. Foi assim no Brasil. A imprensa e a sociedade já concluíram que, se a culpa não é dos pilotos do Legacy, é dos controladores aéreos. Um fato que pouca gente leva em consideração e é imprescindível saber é que uma pessoa sozinha é incapaz de causar qualquer acidente. Atualmente existem equipamentos sofisticados em solo e no ar que evitam e previnem que um indivíduo sozinho cometa algum tipo de erro fatal. Os grandes desastres sempre são ocasionados por um conjunto de fatores que, na maioria das vezes, inclui a falha humana.

VEJA - O controle aéreo de alguns países da América Central - Honduras, Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Belize e Costa Rica - são realizados por uma companhia privada. Privatizar o sistema é uma alternativa eficiente?
Baumgartner
- Atualmente não existe nenhum lugar no mundo que tenha o sistema aéreo inteiramente privatizado. Na maioria dos casos, as empresas privadas fornecem infra-estrutura, ou seja, radares, ferramentas de navegação e comunicação, mão-de-obra e alguns tipos de serviço. O gerenciamento continua a cargo do governo. Na Inglaterra, por exemplo, 51% do controle aéreo é administrado pelo governo e 49%, por empresas privadas. Esse sistema tem funcionado bem.

VEJA - Por que não existem sistemas de controle aéreo civil 100% privatizados?
Baumgartner
- Por dois motivos. Um deles é que nenhum governo quer deixar de ter o pleno controle do espaço aéreo de seu país. Outro é que, ao deixar tudo nas mãos de uma empresa privada, existe o risco de, caso a empresa vá à falência, o país ficar sem um sistema de controle aéreo.

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