14 de janeiro de 2008

A invenção da crise


Era o fim da tarde. Estava em casa sozinho e resolvi ver jogos do PAN-2007. Liguei a televisão e “caí” num canal que exibia um incêndio de imensas proporções enquanto a voz de um locutor dizia: “o governo matou 200 pessoas!”. Fiquei estarrecido e minha primeira reação foi típica de sul-americano dos anos 1980: “Meu Deus! É como o La Moneda e Allende! Lula deve estar cercado no Palácio do Planalto, há um golpe de Estado e já houve 200 mortes! Que vamos fazer?”.


Mas enquanto meu pensamento tomava essa direção, a imagem na tela mudou. Apareceu um locutor que bradava: “Mais um crime do apagão aéreo! O avião da TAM não tinha condições para pousar em Congonhas porque a pista não está pronta e porque não há espaço para manobra! Mais um crime do governo!”. Só então compreendi que se tratava de um acidente aéreo e que o locutor responsabilizava o governo pelo acontecimento.


Mudei de canal. E a situação se repetia em todos os canais: primeiro, a afirmação peremptória de que se tratava de mais um episódio da crise do "apagão aéreo"; a seguir, que se tratava de mais uma calamidade produzida pelo governo Lula; em seguida, que não se sabia se a causa do acidente havia sido a pista molhada ou uma falha do avião. Pessoas eram entrevistadas para dizer (of course) o que sentiam. Autoridades de todo tipo eram trazidas à tela para explicar porque Lula era responsável pelo acidente, etc...


Fiquei ainda mais perplexo: como o locutor sabia qual a causa do acidente, se esta só é conhecida depois da abertura da caixa preta do avião? Enquanto me fazia esta pergunta, angustiado eu desejava saber o que havia ocorrido, pensando no desespero dos passageiros e de suas famílias. O locutor, por algum motivo, mudou a locução: surgiram expressões como “parece que”, “pode ser que”, “quando se souber o que aconteceu”. E eu me disse: mas se é assim, como ele pôde dizer, há alguns segundos, que o governo cometeu o crime de assassinar 200 pessoas?


São poucos os assuntos que eu conheço profundamente, e quando esses assuntos são abordados na televisão é inevitável que eu seja crítico. Sempre que vejo um repórter falar do Exército Brasileiro, das Forças Armadas, de algum Assunto Jurídico ou de qualquer fato ligado à aviação me dá aquele arrepio nos dentes de tanto nojo. Trazem sempre os besteiristas de plantão para falar asneiras para o povo. Logo aparecem os "especialistas". Seja um psicólogo para dar opinião, seja um advogado para falar sobre perdas e danos, seja um "especialista em aviação" (quem souber que curso é este me avise porque ele ainda falta no meu currículo). Sem tirar os olhos da TV crescia o meu asco em relação à midia que eu romanceava tanto. Aquela mídia que um dia eu sonhei, infelizmente, está fadada ao sensacionalismo. Parei para pensar que papel desempenhou a mídia brasileira – especialmente a televisão – na "crise aérea"?


De todo o aparato espetacular de exploração da tragédia e de absoluto silêncio sobre a empresa aérea TAM (que conta em seu passivo com mais de 10 acidentes entre 1996 e 2007, incluindo o que matou o próprio dono da empresa!),  o que me deixou paralisado foi o instante inicial do “noticiário”, quando vi a primeira imagem e ouvi a primeira fala, isto é, a presença da guerra civil e do golpe de Estado. A desaparição da imagem do incêndio e a mudança das falas nos dias seguintes não alteraram minha primeira impressão: a grande mídia foi montando, primeiro, um cenário de guerra e, depois, de golpe de Estado. E, em certos casos, a atitude chega ao ridículo, estabelecendo relações entre o acidente da TAM, o governo Lula, Marx, Lênin e Stálin, mais o Muro de Berlim!!!


Lógico que quem me conhece sabe o que eu penso: não absolvo nem a LULA nem à sua quadrilha institucionalizada. Mas, também não se pode lançar sobre o governo atual toda a culpa de uma crise inventada a partir do desastre com o GOL como se aquele acidente fosse o estopim da crise.


A mídia definiu uma cronologia para a crise aérea dando-lhe um começo no acidente da GOL, quando se sabe que há mais de 15 anos o setor aéreo vem tendo problemas variados. Em contrapartida, a reação do Governo Lula à atuação da mídia nesse episódio foi fraca e decepcionante, como no caso do mensalão. Demorou para se manifestar. Quando o fez, se colocou na defensiva.


O que teria sido politicamente eficaz e adequado, já na primeira hora, era entrar em rede nacional de rádio e televisão e expor à população o ocorrido, as providências tomadas e a necessidade de aguardar informações seguras. o contrário disso, vi o ex-Presidente da Infraero tacitamente chamando para a Empresa a responsabilidade do acidente, ao desastrosamente definir a morte de 200 pessaos como um "pepino" que precisava ser descascado, cozido, cortado...


Todos os dias, no chamado “horário nobre”, entrar em rede nacional de rádio e televisão, expondo as ações do dia não só no tocante ao acidente, mas também com relação às questões aéreas nacionais, além de apresentar novos fatos e novas informações, desmentindo informações incorretas e alertando a população sobre isso.


Mobilizar os parlamentares e o PT para uma ação nacional de informação, esclarecimento e refutação imediata de notícias incorretas.


Mas, o que mais impressionou nisso tudo foi a velocidade com que a mídia determinou as causas do acidente, apontou responsáveis e definiu soluções urgentes e drásticas!


Relatar que ficou atrasado em saguão de aeroporto tudo bem, mas dizer o que "acha" já é leviandade que o brasileiro ainda sente prazer em destilar. Vi, por exemplo, uma ex-top model apresentadora de um programa matinal de variedades falar a respeito da crise. Referia-se à parte dianteira do avião como "bico" - talvez numa infeliz tradução do inglês "beak" - ao que nós, ESPECIALISTAS, chamamos simplesmente de "nariz".


Preciosismo meu? Pode ser, mas mesmo em meio àquele certo ócio governamental, minhas reflexões advogavam um pouco para o diabo. Certamente, por estar diretamente envolvido com a "crise" e trabalhando diariamente no meio do olho do furacão. Ora, seria até infantilidade minha acreditar no que a mídia me dizia.


Sobretudo, acho que vale a pena lembrar o essencial: Desde o governo FHC, há o projeto de privatizar a INFRAERO e o acidente da GOL, mais a atitude compreensível de auto-proteção assumida pelos controladores aéreos foi o estopim para iniciar uma campanha focalizando a incompetência governamental, de maneira a transformar numa verdade de fato e de direito a necessidade da privatização. É disso que se trata no plano dos interesses econômicos.


No plano político, a invenção da crise aérea simplesmente é mais um episódio do fato da mídia e certos setores oposicionistas não admitirem a legitimidade da reeleição de Lula, vista como ofensa pessoal à competência técnica e política da auto-denominada elite brasileira. É bom a gente não esquecer de uma afirmação paradigmática da mídia e desses setores oposicionistas no dia seguinte às eleições: “o povo votou contra a opinião pública”.


Eu acho essa afirmação o mais perfeito auto-retrato da mídia brasileira!


Do ponto de vista da operação midiática propriamente dita, é interessante observar que a mídia:


a) não deu às greves dos funcionários do INSS a mesma relevância que recebem as ações dos controladores aéreos, embora os efeitos sobre as vidas humanas sejam muito mais graves no primeiro caso do que no segundo. Mas pobre trabalhador nasceu para sofrer e morrer, não é? Já a classe média e a elite... bem, é diferente, não? A dedicação quase religiosa da mídia com os atrasos de aviões chega a ser comovente...


b) noticiou o acidente da TAM dando explicações como se fossem favas contadas sobre as causas do acontecimento antes que qualquer informação segura pudesse ser transmitida à população. Primeiro, atribuiu o acidente à pista de Congonhas e à Infraero; depois aos excessos da malha aérea, responsabilizando a ANAC; em seguida, depois de haver deixado bem marcada a responsabilidade do governo, levantou suspeitas sobre o piloto (novato, desconhecia o AIRBUS, errou na velocidade de pouso, etc.); passou como gato sobre brasas acerca da responsabilidade da TAM; fez afirmações sobre a extensão da pista principal de Congonhas como insuficiente (deixando de lado, por exemplo, que a de Santos Dumont e Pampulha são menores);


c) estabeleceu ligações entre o acidente da GOL e o da TAM e de ambos com a posição dos controladores aéreos, da ANAC e da INFRAERO, levando a população a identificar fatos diferentes e sem ligação entre si, criando o sentimento de pânico, insegurança, cólera e indignação contra o governo Lula. Esses sentimentos foram aumentados com a foto de Marco Aurélio Garcia e a repetição descontextualizada de frases de Guido Mântega, Marta Suplicy e Lula;


d) vem deixando em silêncio a péssima atuação da TAM, que conta em seu passivo com mais de 10 acidentes, desde 1996, três deles ocorridos em Congonhas e um deles em Paris – e não dá para dizer que as condições áreas da França são inadequadas! A supervisão dos aparelhos é feita em menos de 15 minutos; defeitos são considerados sem gravidade e a decolagem autorizada, resultando em retornos quase imediatos ao ponto de partida; os pilotos voam mais tempo do que o recomendado; a rotatividade da mão de obra é intensa; a carga excede o peso permitido (consta que o AIRBUS acidentado estava com excesso de combustível por haver enchido os tanques acima do recomendado porque o combustível é mais barato em Porto Alegre!); etc.    


e) não dá (e sobretudo não deu nos primeiros dias) nenhuma atenção ao fato de que Congonhas, entre 1986 e 1994, só fazia ponte-aérea e, sem mais essa nem aquela, desde 1995 passou a fazer até operações internacionais. Por que será? Que aconteceu a partir de 1995?


f) não dá (e sobretudo não deu nos primeiros dias) nenhuma atenção ao fato de que, desde os anos 1980, a exploração imobiliária (ou o eterno poder das construtoras) verticalizou gigantesca e criminosamente Moema, Indianópolis, Campo Belo e Jabaquara. Quando Erundina foi prefeita, lembro-me da grande quantidade de edifícios projetados para esses bairros e cuja construção foi proibida ou embargada, mas que subiram aos céus sem problema a partir de 1993. Por que? Qual a responsabilidade da Prefeitura e da Câmara Municipal?


Bem. Dias depois, a mídia passou a dividir espaço com o fim do PAN-2007. Os traficantes "voltaram" para o RIO (pois durante o PAN eles foram guardados pela mídia em algum cofre, cujo segredo só o Bonner conhecia.


Eu, um guri que sonhava em ser repórter um dia, vejo hoje na mídia um monte de meros repassadores de fofocas ao invés de um formadores de opiniões que pintam o meu nariz de vermelho e depois, com cara deslavada e voz grave dizem "Boa noite"!

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